quinta-feira, 11 de julho de 2013

LUTAR COM DEUS OU CONTRA DEUS


 Gênesis 32:22-32 

“Como príncipe lutaste com Deus”.  Lutar com Deus. É admissível? Jacó, o suplantador, não foi o único a ter essa experiência. Outros servos de Deus, em épocas e circunstâncias diferentes iriam tê-la. Um deles, o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, já falecido, dizia: A minha vida não é comungar, mas lutar com Deus, desde o crepúsculo da manhã até o anoitecer como se diz ter Jacó lutado com o anjo”.  Evidentemente que não se tratava de uma luta no plano físico, corporal, mas noutra esfera, da mente e da alma. Então: teria sido a luta de Jacó uma competição em termos de força física? Ou teria sido uma porfia de caráter moral, psicológico e espiritual?  
Os estudiosos contemporâneos dão a essa escritura um sentido muito mais nobre e reverente do que aquele que, à primeira vista, se lhe poderia atribuir. Ei-lo: O escritor sagrado teria recorrido à imagem antropomórfica muito viva para designar uma luta que se passou não fora de Jacó, mas estritamente na consciência deste. O suplantador, depois de muitas fraudes, via-se de regresso a casa sabendo que seu irmão Esaú lhe ia ao encontro com 400 homens. O perigo de morte, que então enfrentava, o fez cair em si. Tomando consciência dos atos injustos que cometera, julgou ter chegado a hora de sofrer o castigo de Deus. O abatimento a que este pensamento o reduziu equivalia para ele a uma agonia ou luta. O patriarca, porém, não morreu nessa crise; ao contrário, conseguiu sair da depressão. Com efeito, o Senhor lhe deu a conhecer que o pouparia, embora o pudesse derrotar. Não o amaldiçoaria, mas o tornaria, daí por diante, divinamente forte contra os homens, Israel, ou seja, o portador das inabaláveis promessas e bênçãos messiânicas. Jacó, para o futuro, não seria o suplantador que vence por meios fraudulentos, mas aquele que sabe contar com o auxílio de Deus mais do que com a própria habilidade. O defeito deixado na coxa de Israel lembrar-lhe-ia a impotência do seu poder humano e a prepotência de Deus, que liberalmente outorga a vitória ao indivíduo que Ele escolhe.  
De qualquer modo interpretando, uma coisa é certa: Ali, no vau de Jaboque, naquela madrugada, ele teve a experiência mais dramática de sua vida, responsável pela transformação que nele se operou, ou seja, de Jacó enganador para Israel batalhador! Bem, deixemos de lado a controvérsia em torno de assunto tão polêmico. Mas, se não é admissível, ou é, uma vez entendida a luta em termos de experiência muito íntima com Deus, que dizer do atrevimento de M. Unamuno e da ousadia do próprio tema desta noite? Aqui propomos duas considerações:  

a) O Antigo Testamento nos apresenta vários personagens em situação de crise aflitiva que ilustram nossos comentários. Exemplo: Moisés “risca-me do teu livro”; Elias “basta, toma agora, ó Senhor, a minha alma”; Job “Pereça o dia em que nasci”; o salmista Asafe “quando o coração se me amargou e as entranhas se me comoveram eu estava irreconhecível”; Jeremias “Justo és, ó Senhor, quando entro contigo num pleito; contudo falarei dos teus juízos”; Habacuque ”Até quando, Senhor, clamarei eu e tu não me escutarás? Oséas “O Senhor nos despedaçou...Ele fez a ferida! 

b) O discernimento comum sobre esses exemplos saberia diferenciar entre lutar com Deus e lutar contra Deus! Lutar com Deus revela conhecimento íntimo da sua natureza de Pai amoroso e bom; revela confiança, revela espírito de intensa comunhão. Se quisermos um exemplo do que estamos falando, o colheremos no seguinte depoimento: Há algum tempo foram enfeixadas num livro, e publicadas, algumas cartas que o nosso amigo e contemporâneo, escritor Frei Beto, enviou para amigos, parentes e irmãos, quando se encontrava preso, sob a injusta acusação de anarquista. Entre elas se destaca uma destinada à sua irmã Cecília. Eis o seu teor: 
 “O amor que te dedico é grande como a distância que nos separa. Na tua simplicidade e no teu silêncio há qualquer coisa que sempre me tocou profundamente. És uma daquelas raras pessoas que sabem sempre ser pobres e possuem por isso uma imensa riqueza interior. Há em ti muitas coisas que correspondem à imagem que faço de Maria. Talvez porque não deves fazer nenhum esforço para amar a Deus. Ele te ama e isso se traduz claramente em tua vida. Minhas relações com Deus são muito diferentes, vivo em luta com Ele, discuto, me enraiveço, nunca estou satisfeito... Deus me arrancou da família ainda muito jovem e pôs sobre os meus ombros um jugo muito pesado, e me enviou a outras terras no meio de gente desconhecida. A ti Ele nada pediu de semelhante, não te impôs um jugo e nem te separou da família. Eu Lhe resisti, mas Ele venceu e me levou a uma vocação que nunca pensei ter... Olha um pouco o que Ele fez de mim: Me levou de cidade em cidade, me permitiu fazer belas amizades de que tive de separar-me, me arrastou por caminhos estranhos, me tornou notícia de primeira página nos jornais, permitiu que eu acabasse nessa prisão. Por vezes eu me pergunto: Até quando, Senhor? E tenho a impressão de que Ele ainda não se cansou de exigir de mim muito mais do que tudo que posso dar. Houve dias em que só me mantive de pé porque Ele o quis. Se dependesse de minhas forças, teria caído mil vezes. No mais fundo de mim mesmo peço a Deus de ser como tu, cheio de paz, com uma fé límpida e transparente como a água das montanhas. Não consigo! Ele quer que eu viva entre tempestades e ciclones, e sou obrigado a sustentar-me no fio de fé  que Ele me  concede. Minha irmã, o verdadeiro drama é que Deus confia demais em Nós. Quer que sejamos sua presença junto aos homens...Imagino que tua prece seja toda feita de silêncio. Eu, pelo contrário, não oro; discuto. Quando o faço, coloco uma série de problemas, ofereço sugestões, propostas, analiso, etc. Há dias em que tenho a impressão de que Ele não queira mesmo escutar-me... No entanto, insisto. Peço uma coisa, Ele me dá outra. Falo de certa maneira, Ele entende de outra. Talvez venha a ser assim até o dia em que nos encontraremos face a face... Poremos então os pingos nos is”.  
Aí está o exemplo, repito, de alguém que luta com Deus como Jacó. Agora, lutar contra Deus, e não é preciso mencionar exemplos, é atitude de Quem o conhece de longe, por informação, e conhece muito mal. Por isso mesmo abre greve contra Ele. Para reforçar essas considerações  sobre o tema em pauta, ou seja, lutar com e lutar contra, permitam-me ilustrar: quando estudante, na década de 60, imerso em profunda crise existencial, ouvi de um experiente pastor muito piedoso e bom amigo, o seguinte: a sua aflição reflete a justificável e sensível preocupação com a realidade sofredora da humanidade. Mas não se esqueça do seguinte: jamais se afaste da mística da evangelização, ou seja, dos mistérios da fé que se resumem na encarnação, expiação e ressurreição.   
Concluindo: lutar com Deus significa abrir o coração e apresentar-lhe as nossas mágoas, dúvidas, perplexidades, esse turbilhão de emoções que nos agita na intimidade, quando entramos no recesso da comunhão com Ele. Lutar contra Deus, repito, é fazer greve, a única que, mesmo não sendo ilegal, pois Ele não obriga ninguém a amá-lo, jamais produz resultado positivo ou favorável. E como ocorre essa greve? Negando as bênçãos recebidas, rejeitando os recursos (meios de graça) para superar as dificuldades, afastando-se dos meios próprios e adequados, culpando e responsabilizando a Deus pelos erros humanos, consequência natural da vida...  
Portanto, atentemos e nos capacitemos do seguinte: o plano pessoal e íntimo de relacionamento com Deus está a critério de cada um conforme as circunstâncias que nos envolvem. Cuidemos, porém, para que não seja equivalente a greve.  


Rev. Ephrain Santos de Oliveira 
pastor jubilado 
Igreja Presbiteriana

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